sábado, 24 de julho de 2010

Palestra: Visões sobre a realidade e a mudança – a psicologia do Yoga*


*Palestra realizada no XIII Simpósio Internacional da Associação Junguiana do Brasil realizado em Canela-RS (Nov/2005).


Súmula:

Há mais de dois mil anos atrás surge um texto que elabora a nível bastante profundo noções da estrutura da mente, do inconsciente, as causas do sofrimento humano e os meios de trilhar o caminho de saída. Mais interessante ainda, seu autor proclama que ele não é o criador do que ali está estabelecido, mas que esse conhecimento já vem sendo transmitido há muitos e muitos séculos. Esse autor, considerado também um grande mestre na área da medicina e da gramática, é Patanjali, o primeiro professor que sistematizou o conhecimento do Yoga através da mais completa e perfeita escritura do Yoga que já existiu, o Yogasutra. O objetivo dessa apresentação é desenvolver a visão psicológica e espiritual dessa escritura e estabelecer um vínculo entre esse
conhecimento tão antigo e abrangente com os sistemas de cura da atualidade.


Palestra

Abertura:


O Prof. Wolfgang Giegerich, ao abrir sua palestra no sábado à noite, se referiu à vela que estava colocada junto à mesa dos palestrantes e fez uma interessante colocação ao dizer porque havia solicitado a retirada dela. Disse que não gostaria que a luz ficasse fora, e sim dentro das palavras que ele estava por proferir. Ao dizer isso ele trouxe um conceito essencial dentro do ensinamento do yoga do qual trataremos aqui.

O yoga é um sistema de conhecimento que tem origem na Índia e que se espalhou pelo mundo inteiro, tendo influenciado muitos filósofos (como Schopenhauer e Nietzche, por exemplo) e outros pensadores ao longo dos últimos séculos.

Sua origem é muito antiga, provavelmente mais de 4 mil anos. Seu texto central, considerado recente devido ao yoga ter se mantido por muito tempo como uma tradição exclusivamente oral, foi escrito há cerca de dois mil anos por um grande sábio chamado Patanjali. É neste texto, que continua sendo estudado incansavelmente por estudiosos de diversas áreas até os dias de hoje, que encontramos ensinamentos sobre a percepção humana, sobre o sofrimento, suas causas e como reduzi-lo.

Há pouco mais de um século começaram as primeiras traduções ocidentais de textos em sânscrito, língua na qual a maior parte dos ensinamentos do yoga foram escritos, e, conseqüentemente, os primeiros contatos mais sérios com a civilização ocidental. Mas é ainda muito mais recente a concordância dos professores tradicionais em ensinar ocidentais de forma continuada e profunda. É por isso que o yoga tem pela frente um longo caminho de amadurecimento no ocidente, há ainda muitas confusões e enganos.

Com o objetivo de estruturar melhor esta análise, dividirei aqui o conteúdo em três tópicos principais:
1- O alicerce teórico do yoga enquanto sistema de cura;
2- A mente enquanto instrumento de relacionamento;
3- A fonte da percepção: o eixo do ser humano.



1-O ALICERCE TEÓRICO DO YOGA ENQUANTO SISTEMA DE CURA

Yoga é um conhecimento que trata da mente, tendo como propósito reduzir as causas do sofrimento humano. A mente é vista como a fonte desse sofrimento e, ao mesmo tempo, como a responsável por achar o caminho de saída. E por quê? Porque é através dela que nos relacionamos com o que está ao nosso redor, é através dela que compreendemos algo ou nos enganamos, é nela que surge o desejo incontrolável por alguma coisa e a raiva de outra. E é por isso, pelo que acontece nela, que sofremos ou nos alegramos. Quando eu uso a palavra mente aqui, creio que a forma mais segura de traduzi-la para a realidade deste simpósio é como “psique”. A palavra mente, ou “citta”, no vocabulário do yoga, inclui todos os processos emocionais, nossas memórias, marcas, identidades, medos, imaginações, compreensões e enganos. E essa mente é muito poderosa, não podemos ser simplistas quando temos por objetivo realizar alguma mudança no campo emocional. Por isso consideramos que o primeiro passo para preparar o terreno para uma mente sadia é ter algum grau de tranqüilidade física, algum nível de bem-estar e saúde física. Além do corpo físico, também a nossa vitalidade afeta a estabilidade emocional. Quando estamos nos recuperando de uma doença – e ainda não voltamos plenamente à nossa vitalidade habitual - podemos perceber que nosso estado mental também se modifica. O que eu quero enfatizar aqui é a importância de haver um grau mínimo de saúde física e vitalidade para que possamos mergulhar em uma reflexão imparcial a respeito dos fatos, a respeito de nós mesmos e do que nos cerca. Há uma relação muito mais íntima do que normalmente imaginamos entre os vários níveis que compõem a pessoa humana. Quanto mais tivermos experienciado um certo grau de saúde em outras esferas (dimensões física e respiratória, por exemplo), mais naturalmente isso será possível a nível emocional. Infelizmente, hoje em dia, isso tem sido muito desconsiderado em várias abordagens terapêuticas. É muito provável, inclusive, que o simples resgate dessa vitalidade - desta experiência de saúde (mesmo que ainda a um nível primário) - enfraqueça certos conflitos ou dificuldades mais superficiais que andavam nos rondando. Ou, pelo menos, abrirá caminho para enfrentarmos desafios com mais energia e bem-estar. Este é o alicerce do yoga, a interação entre os vários níveis do ser humano.


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YS II.28 “YOGANGAANUSTHANAT ASUDDHIKSAYE JNANADIPTIH AVIVEKAKHYATEH”
“Os esforços para trazer saúde e estabilidade ao corpo, à respiração e à mente devem ser seguidos firmemente (anustha). Isso reduz (ksaye) os obstáculos (impurezas=asuddhi) para que a luz do conhecimento possa brilhar (jnana diptih=luz do conhecimento) e possamos vivenciar uma grande discriminação (aviveka=discriminação ilimitada) correta a respeito de nós e do que nos cerca.”

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2- A MENTE ENQUANTO INSTRUMENTO DE RELACIONAMENTO

Uma vez tendo compreendido a relevância de levarmos em consideração essas várias esferas no processo de cura, eu gostaria de esclarecer um ponto muito importante com relação à visão de mente no yoga. A natureza da mente é ser inconstante, num momento eu estou triste por alguém ter roubado o CD player do meu carro, no outro estou feliz porque aproveitei para colocar um MP3 no lugar dele. A mudança de estados mentais é uma experiência que temos diariamente, e, na maioria das vezes, as mudanças se dão independentemente da nossa vontade. Didaticamente, podemos enumerar cinco estados mentais nos quais a mente opera: no primeiro e no segundo estado, que são os mais doentios, não há chance para qualquer tipo de compreensão. No primeiro estado a agitação é tão grande que não nos abandona por um segundo sequer, no segundo estado o torpor é tal que a sonolência e inércia impedem que qualquer outra atividade mental ocorra. O terceiro estado mental é aquele em que estamos mais habituados a viver, oscilamos entre momentos de torpor, agitação e concentração. O quarto estado é aquele no qual conseguimos nos concentrar habilmente em algo, é o primeiro passo para conseguirmos ter a compreensão a respeito de um objeto. E o quinto estado, finalmente, é o onde conseguimos nos envolver com esse foco sem nenhuma perturbação e tirar dali um grande aprendizado. Reconhecendo esses vários estados como sendo uma enumeração das várias possibilidades e do potencial da mente, podemos concluir que temos uma chance de sair de uma situação de sofrimento, basta termos a sabedoria e a atitude necessárias para colocarmos essa mutabilidade a nosso favor. Ao perceber que certos fatores nos conduzem mais facilmente ao sofrimento e outros nos conduzem ao contentamento, temos a possibilidade de fazer escolhas mais positivas. Digamos que essa possa ser vista como uma segunda etapa, uma etapa onde estamos desenvolvendo um auto-conhecimento que nos permite escolher o que é mais apropriado para colaborar com nossa saúde emocional (a primeira etapa foi reduzir qualquer desconforto físico ou doença e desenvolver vitalidade). Mas, mesmo assim, essa segunda etapa ainda pode ser considerada uma etapa emergencial, ainda estamos no pronto-socorro. Aqui ainda estamos nos protegendo daquilo que nos perturba, ou seja, encontramos a fonte mais aparente do nosso problema, mas não o resolvemos, apenas nos afastamos dessa fonte, assim como nos afastamos do sol quando estamos com muito calor, nos abrigamos no primeiro local onde haja sombra, ou onde haja um ar-condicionado. Uma vez que estejamos razoavelmente protegidos, não mais estamos totalmente tomados por perturbação, estamos mais preparados para a terceira etapa. A segunda etapa é essencial, é muito importante, mas podemos andar mais.



3-A FONTE DA PERCEPÇÃO: O EIXO DO SER HUMANO

No Yoga consideramos que existe um nível mais profundo, mais central no ser humano. Um nível mais profundo que a mente. TKV Desikachar, no livro “What are we Seeking”, usa uma metáfora onde relaciona este eixo do ser humano com o eixo de uma roda. Imagine uma roda presa a um eixo central (como a roda de uma bicicleta ou de uma carruagem). Quando giramos a roda e olhamos para a parte mais externa, vemos muito movimento. Mas quando posicionamos nossos olhos no eixo central, não existe movimento nenhum ali. Aliás, se o eixo não estiver totalmente estável a roda não irá girar com tanta habilidade. Pois nós também temos esse eixo, e esse eixo é considerado a fonte da nossa percepção. Ele que nos dá a capacidade de sermos conscientes de algo, de percebermos algo. A mente, neste sistema, é apenas um instrumento. Sendo um instrumento, ela pode ser útil, se for refinada e se tiver as qualidades necessárias para realizar nosso objetivo, ou pode ser um obstáculo, se for um instrumento frágil e mal acabado. Assim como um microscópio limpo, com lentes de boa qualidade, permite que eu faça descobertas sobre a estrutura de uma célula, enquanto que um microscópio mal cuidado, que acumulou fungo numa das lentes, não permite que eu investigue com precisão meu objeto de estudo. A mente torna-se, assim, um instrumento a ser cuidado, fortalecido, refinado. Ela é o instrumento, não é o chefe, ela é o meio, a nossa ferramenta. Lembremo-nos que há algo mais profundo. Uma vez que o instrumento seja apropriadamente fortalecido e refinado, ele se torna um bom condutor dessa percepção, dessa consciência, desse eixo central. Considera-se que, assim como a conseqüência natural do alívio de uma perturbação física é um bem-estar mental ou assim como a conseqüência natural da cura de uma doença é o retorno da nossa vitalidade, também a conseqüência natural de uma mente saudável - forte e refinada – é o contato com esse eixo, essa fonte. Como essa fonte é responsável pela nossa percepção, nossa consciência, uma vez que entramos em contato com ela passamos a ter uma maior clareza em nossas reflexões e, portanto, em nossos atos. Essa fonte, diferente da mente, tem por natureza a constância, a clareza. Pois ela não é um instrumento, ela é a base. O que consideramos cura no yoga é a manifestação dessa clareza. Só a clareza pode reduzir o sofrimento. E a clareza só é possível se passarmos por todas as etapas. Pressa é sinônimo de fracasso em yoga. Eu posso até sentir urgência em me livrar do sofrimento, mas essa urgência precisa ser transformada em ações apropriadas, para que possamos seguir etapa por etapa e assim produzir as transformações possíveis em cada momento da vida.

Finalização:

Uma das questões que naturalmente pode surgir neste momento é: O que é esta fonte da percepção? E aqui nós entramos, talvez, num dos temas centrais do seminário que assistimos ao longo deste fim-de-semana: seria este eixo algo espiritual? Seria algo ligado a alguma tradição religiosa específica? O que é isso que consideramos “o mais profundo”?
Para o yoga não interessa o nome, não é algo vinculado a nenhuma tradição religiosa específica. O que importa aqui é que esta realidade existe em nós, é um nível do ser humano que, assim como as outras esferas na nossa existência, não pode ser negado. Quando recorremos, em yoga, a alguma noção religiosa, adotamos aquilo que é a verdade de cada praticante. Talvez, para uma determinada pessoa, Jesus Cristo transmita as qualidades de clareza, sabedoria, luz. Para outra pessoa, quem sabe Buda corporifique essas qualidades. Outra, nem sequer dê um nome a isso, considere que exista uma força universal mais elevada. Se consideramos que esse eixo central é uma realidade presente em cada pessoa e que em todas as pessoas esta realidade tem as mesmas qualidades, então não precisamos nos preocupar com o nome do referencial externo que essa pessoa adota. Nossa preocupação está em colaborar para que o praticante consiga ver neste referencial as mesmas qualidades que ele irá buscar dentro de si mesmo.
Esse é o aspecto espiritual do Yoga. Se o indivíduo tem um referencial espiritual externo, ótimo. Se não tem, não há problema algum, pois outros meios são descritos para nos conduzir etapa por etapa a essa descoberta interior. Etapa por etapa.


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YS I.23 “ISVARA PRANIDHANADVA”
“Um dos caminhos para yoga é a entrega a Deus.”

YS I.25 “KLESA KARMA VIPAKA ASAYAIH APARAMRSTAH PURUSA VISESA ISVARAH”
“Deus é aquele que não é afetado pelo ciclo de ações estabelecidas em engano e medo.”

YS I.26 “TATRA NIRATISAYAM SARVAJNA BIJAM”
“Ele é a fonte ilimitada de toda a sabedoria.”
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Observação final:

Eu tenho certeza que muitos de vocês aqui também já tiveram a oportunidade de escutar de seus pacientes a mesma coisa que já escutei de alguns alunos: “eu não consigo mais rezar sem sentir isso como algo falso”. Eu acho que essa frase que muitos de nós já escutamos no início de um tratamento resume bem o que foi tratado aqui e também nos dá um bom material para reflexão.

Obrigado

domingo, 18 de julho de 2010

Ensinar a ensinar X Aprender a aprender

Não tenho nada contra o ambiente acadêmico em si, mas não consigo admirar a forma como tem se transmitido o ensino nas áreas humanas e biológicas (e mais especificamente nas área ligadas ao estudo da mente). Se queremos preparar seres humanos precisamos mais do que professores que são obrigados a se preocupar com o conteúdo e sequer conhecem seus alunos. Queremos futuros profissionais repetindo textos ou pensando o homem e a sociedade?
Nosso sistema educacional tem privilegiado muito a massificação do ensino, há pouco espaço para a criação da crítica, da discordância, do debate. A proximidade e a intimidade entre professores e alunos é mínima. Eu disse intimidade? Sim, a intimidade é um fator imprescindível na educação verdadeira. Não há comunicação profunda sem intimidade, e sem comunicação profunda não há aprendizado. Nos habituamos a chamar de aprendizado algo que não merece este nome, nos acostumamos com pouco. Ambiente educacional é muito mais do que isso que temos experienciado.
Ao entrar na academia, um estudante traz a expectativa de sair dali “formado”, de ser educado na área de seu interesse. Ao longo do seu curso passará por dezenas de professores, esquecerá do nome de muitos destes e os professores, por sua vez, não terão condições de lembrar do nome de 10% destes alunos. Devemos lembrar que a formação de um profissional das áreas humanas ou biológicas, por excelência, exige o desenvolvimento de um ser humano de forma integral. Os cursos são catalisadores deste processo pessoal. Porém, sem relações verdadeiras de ensino e aprendizado, o que teremos? Alunos órfãos, aprendizados estéreis.
Já seria um grande passo se fôssemos capazes de reconhecer que o ambiente acadêmico não tem condições de construir um profissional, ele pode apenas contribuir no refinamento de um profissional (na melhor das hipóteses). Torná-lo alguém capaz de exercer ou não determinada profissão da área humana ou biológica está além do alcance da educação formal, pois seu sucesso (me refiro a sucesso real, sucesso em sua empreitada interior e não, necessariamente, reconhecimento) dependerá infinitamente mais da sua coragem de mergulhar em si mesmo e questionar seu mundo do que da sua habilidade de estudar vários livros. Sei que essa realidade não se limita ao meio acadêmico, mas considero que ele seja um bom exemplo para analisarmos esta questão. Mesmo o conhecimento psicológico do yoga, que tem sido muito pouco compreendido em nossa cultura (inclusive no próprio meio do yoga), tem sofrido, modernamente, de um mal parecido. E é, na verdade, por esse motivo que eu me proponho a analisar essa situação.
Mas, ainda assim, alguns alunos órfãos sobrevivem. Minguam, lutam e sobrevivem. E esses alunos, que têm real desejo de aprender e são leais a sua a ânsia de compreender mais e mais, têm chances de realizarem seu propósito. Esses alunos continuarão sempre sendo alunos, continuarão se reconhecendo como tal mesmo ao assumir um papel de educador/professor. Serão professores que exercem seu papel de forma consciente, que incitam reflexão, incitam dúvidas. Que esses sobreviventes revolucionem a educação, que cresçam em número, que tenham força, que dêem vida à educação. O mais nobre objetivo de um verdadeiro professor é acordar o aluno, nutrir o aluno, pois é dificílimo ser e saber manter-se aluno. Um professor, no pleno exercício de sua atividade, aprende a aprender, ensina a aprender, não aprende a ensinar e nem ensina a ensinar. Quem faz o professor é sua alma de aprendiz, a capacidade de ensinar é mero fruto do amadurecimento do pensar. Ensinar a ensinar é possível, mas alimenta o medíocre. Já ensinar a aprender dá lugar à manifestação da sabedoria. Um limita, outro liberta o ser humano.
Tenho pensado muito a respeito da palavra sânscrita “antevasin”, um conceito básico para a correta compreensão da educação em yoga. “Antevasin” significa “aquele que vai até o fim”. E onde é o fim? O fim é longe...é para onde aponta aquele que ensina. Essa palavra sânscrita traz a idéia de que, se eu pretendo aprender, devo me submeter verdadeiramente ao aprendizado. Parece óbvio, mas na prática não é. Submeter-se é uma palavra forte, às vezes traz medos. E não é à toa. É necessário cuidado para escolher ao que se submeter. Mas, como diz a canção de Bob Dylan que tem sua versão em português escrita por Vitor Ramil “Seja a Deus ou ao Diabo, um dia você vai servir alguém”. No contexto da educação precisamos repetidamente nos perguntar se servimos à busca da verdade. A verdade pode até, em certas situações, vir perfumada com alguma surpresa confortável, mas haverá situações em que ela virá acompanhada de surpresas desagradáveis ao primeiro olhar. Que neste momento não oremos por uma mentira.
É na experiência desagradável que o aluno se mostra, pois ele sustenta sua procura mesmo diante do desprazer. Seu objetivo é o amadurecimento, o aprendizado, não o fruto agradável ou desagradável. Sua alegria é seu crescimento, é se conhecer.
Que ninguém tenha êxito ao tentar nos ensinar a ensinar e que nós, seres humanos, encontremos em nosso caminho pessoas que nos ajudem a reconhecer que não há outro caminho senão aprender. Que continuemos, apenas, a aprender a aprender.
Agradeço, de coração, ao professor que me ajudou a amadurecer essa compreensão, que me mostrou isso vivo, TKV Desikachar. Sem ele eu não teria vislumbrado o sentido da palavra educação.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Quem quer ser humano?

Estou quase me convencendo de que esse negócio de não saber o que se passa na cabeça dos outros foi trabalho do diabo. Deus deu aquela famosa cochilada (no sétimo dia) e o diabo, caminhando pelas sombras, foi lá e fez uma rápida, porém, profunda, modificação no projeto. E, assim, o que era para ser um paraíso, virou um verdadeiro inferno.
Brincadeiras à parte, nós, seres humanos, compartilhamos muito mais características do que imaginamos. Sofremos e nos envergonhamos silenciosamente de emoções que são completamente normais, esperadas. Muitos conflitos internos surgem e são alimentados pelo fato de termos vergonha de nossos pensamentos e sentimentos. O que esquecemos é que todos nós temos vergonhas, medos, ansiedades. Reconhecer a existência desses medos definitivamente não nos tornará mais infelizes.
Assumir nossa “condição humana” é fundamental para nossa felicidade. A cegueira não traz tranqüilidade de longo prazo. Assumir-se “ser humano” é nossa única chance, chance de olharmos mais profundamente para nós mesmos e, assim, entendermos quem somos.
Podemos buscar várias razões para esta dificuldade, mas nenhuma solucionará o problema. Poderíamos dizer que nossos pais exigiram que fôssemos perfeitos, que a sociedade só nos aceita se seguirmos seus padrões, mas, mesmo que essas influências sejam verdadeiras, a capacidade de mudança é apenas nossa. A sociedade e a família têm papel formador durante uma boa etapa de nossa vida, mas ao indivíduo cabe desempenhar o papel de reformador e criador.
Considero que a noção de indivíduo ainda é muito pouco compreendida em nossa cultura. Assumir nossa “condição humana” traz seu desafio, pois somos, ao mesmo tempo, mais parecidos do que imaginamos e mais diferentes do que imaginamos. Já explico. Nosso mundo emocional, inevitavelmente, apresenta medos, raivas, paixões. E essa realidade interna, frente a um mundo de recursos limitados (isso a economia nunca conseguiu resolver e nem resolverá) gera as inevitáveis frustrações e dificuldades de inadequação. Nisso somos iguais, são geradas reações e sentimentos que surgem dessa briga. Essas reações são naturais, são necessárias, são manifestações de nossa saúde mental. A questão está em quais serão nossos próximos passos ao nos depararmos com elas. Nossa igualdade ou semelhança está na natureza das nossas emoções, nossa diferença está na forma como as gerimos. A história de cada pessoa já é suficientemente diferente e, além disso, a memória que armazena esta história é construída a partir da maneira como cada situação foi experimentada (e não como ocorreu), pois a memória é subjetiva. Ou seja, nossas lembranças são registradas a partir da sensação que o fato gerou e não apenas do fato em si. E nossa memória é um importante fator de construção da individualidade, ou da forma que escolheremos (consciente ou inconscientemente) para administrar nossa relação com o mundo.
A partir daí, podemos concluir que não é necessário amargar em culpa e julgamento, mas respeitar o que vemos em nós e reconhecer que temos muito a aprender com as emoções que vão sendo descobertas. Assim, vai se formando um indivíduo, se reconhecendo como semelhante e, ao mesmo tempo, como único. As vivências que se somam ao longo da vida de um indivíduo formam um quebra-cabeças que jamais se repetirá. A composição de um ser humano é sempre única. Nessa unicidade surge a diversidade humana, a diferença que se expressa também exteriormente, que cria transformações sociais, que traz o novo, que revoluciona, que exige a revisão das crenças estabelecidas.
Olhar para si mesmo e se reconhecer como semelhante, como um ser humano que pode ser compreendido por outros seres humanos, traz tranqüilidade, humildade, confiança. Olhar para si mesmo e se reconhecer como único, como um ser humano que tem em si algo novo, saber que jamais uma vida igual será gerada, traz coragem.
Fecho este artigo com uma história contada na peça teatral “A Alma Imoral” (escrita pelo Rabino Nilton Bonder).
“Por que estás tão irriquieto?”, perguntou o discípulo ao Rabino Sússia, ao vê-lo em seus momentos finais de vida.
“Tenho medo”, respondeu Sússia.
“Medo de quê, rabino?”.
“Medo do Tribunal Celeste”.
“Tu? Um homem tão piedoso, cuja vida foi exemplar? Se tu tens medo, imagine nós, cheios de defeitos e imperfeições.”
Rabino Sússia, então, diz: “Não temo ser inquerido por não ter sido como o profeta Moisés, não deixei um legado de seu porte. Eu posso me defender dizendo que eu não fui como Moisés porque eu não sou Moisés. Nem temo que me cobrem profecias como as de Maimônides, por eu não ter oferecido ao mundo a qualidade de sua obra e seu talento. Eu posso me defender dizendo que eu não fui como Maimônides porque eu não sou Maimônides. O que me apavora neste momento é que me venham indagar: ‘Sússia, por que não foste Sússia’?”.








Referências do Yogasutra para este artigo:
-Sraddha-virya-smrti-samadhiprajna (I.20) / Klesa-karma-vipaka-asayaih (I.24) / Parinama-tapa-samskaraduhkhaih-gunavrttivirodhacca-duhkhameva sarvam-vivekinah (II.15) / Etena-bhutendriyesu-dharma-laksana-avastha-parinamah-vyakhyatah (III.13)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Cara a tapa (escrito após o jogo Brasil X Holanda na Copa de 2010)

Só de pensar em escrever após a eliminação do Brasil na copa, me vem em mente uma história que me foi contada há alguns anos. Um astrólogo muito reconhecido no Brasil foi entrevistado pelo Jô Soares e, naquele momento, aceitou fazer uma previsão do resultado de um jogo que o Brasil estava prestes a disputar. Sua previsão foi de que o Brasil venceria. O Brasil perdeu...e o astrólogo também. Algumas pessoas dizem que sua carreira foi bastante prejudicada por este fato.
Digo isso porque meu propósito é muito menos arriscado...dou minhas opiniões só após o jogo e me policio para me restringir a minha área (Deus me livre de eu dar alguma opinião sobre a área do Dunga, vai que a CBF goste e me chame para treinar a seleção).
O que eu quero trazer aqui é minha opinião enquanto pessoa que trabalha com pessoas, com grupos. E não tenho a presunção de afirmar algo incontestável, mas algo que, na minha opinião, pode trazer um pouco de reflexão neste momento de derrota da seleção brasileira.
Eu vi um grupo brasileiro, e gostei de ver. Um grupo que sofreu uma derrota, o que é, obviamente, da natureza das competições. Mas eu gostaria de estar presente neste grupo, e acredito que não teria me arrependido de ter participado deste grupo, mesmo após a derrota (aliás, se eu fizesse parte a derrota era garantida). Quando Dunga foi entrevistado, após a partida, ele disse que se quiséssemos realmente conhecer esta seleção deveríamos ver a expressão de cada jogador no vestiário, ao fim do jogo. Júlio César, um grande goleiro que teve seus maus momentos contra a Holanda, resolveu encarar os jornalistas e mostrar que Dunga falava a verdade. Júlio César falou da tristeza do grupo, chorou, se expôs com coragem e humildade. Júlio César mesmo disse: “Estou colocando minha cara a tapa”.
Neste momento, naturalmente, procuramos responsáveis, culpados pela derrota. Mas quem foi o responsável pela maturidade do grupo? Quem foi o responsável por criar uma equipe que manifesta respeito, dedicação, tristeza?
O futebol passa por um momento frágil, uma fragilidade produzida pela potência econômica que se tornou. Afirmo isso no sentido humano, no sentido de grupo, de identificação com o time. Hoje temos mais “empresas” do que “times”. Há pouco tempo era possível ver um jogador passar toda a sua carreira no mesmo time. Existia uma identidade, existia uma paixão de um grupo. Hoje temos negócios, o que mais se fala é sobre a “janela” (período em que se intensificam as negociações de jogadores devido a algumas regras e calendários das competições mundiais). O jogador de futebol de hoje vive uma experiência semelhante à dos grandes executivos, à medida que é reconhecido e traz resultados será comprado pelos “times” de grande capacidade econômica. E o grupo? O grupo passa a ser uma soma de jogadores que, muitas vezes, tem pouca ou nenhuma identificação com a sua “empresa”.
Na copa do mundo de 2006 eu vi isso, vi um grupo apático jogando pelo Brasil. Não me pareciam muito identificados com a tal “seleção Brasileira”, mas eram estrelas que se achavam no direito de estar lá. Tanto que os torcedores se surpreenderam quando, no jogo em que o Brasil foi eliminado pela França, muito jogadores brasileiros saíram de campo sorrindo. Os torcedores tristes e os jogadores sorrindo após uma grande derrota? Como assim? Como diria o maravihoso Chicó ( personagem do filme “O auto da compadecida”): Não sei, só sei que foi assim.
Hoje, quando eu, triste, vi os jogadores saindo de campo chorando pela derrota, pensei “que felicidade, voltamos a ter uma seleção brasileira”. Vitórias aparecem, craques aparecem e dão mídia, mas transformações e amadurecimento dificilmente geram tantos fãs.